Semana Cáritas 2014
Mensagem da Comissão Episcopal
UNIDOS NO AMOR,JUNTOS CONTRA A FOME
1. A salvaguarda dos direitos dos famintos e dos pobres é transversal a toda a Bíblia. Já no Antigo Testamento, Deus toma decididamente o partido dos pobres. Por isso, dão-se regras sobre as colheitas e as vindimas para que também os pobres e os estrangeiros possam colher algo (cf Lv 19, 9 ss). E aos reis impõe-se a função de representar Deus, Pai dos pobres: “Ele libertará o pobre que suplica, o mise-rável que não tem outros apoios; cuidará do débil e do pobre; aos pobres salvará a vida” (1 Sam 2, 7-8). Com o progresso da revelação, acentua-se esta certeza: que o pobre é um predilecto de Deus. Por isso, o salmista pode cantar: “O pobre clamou e o Senhor o ouviu. Libertou-o de todas as suas angústias” (Sl 72, 12-13).
2. O Novo Testamento abre precisamente com o Magnificat (Lc 1, 46-56) que recupera a teologia do Antigo e opta, sem reservas, pela salvação dos pobres: “derrubou os poderosos de seus tronos e exaltou os humildes; aos famintos encheu de bens e aos ricos despediu de mãos vazias” (vers. 52-53). É a grande afirmação da justiça de Deus que socorre os pobres e faz deles objecto de eleição. Tal como Jesus de Nazaré. Por isso, aos discípulos do Baptista que O interrogam se é Ele o cumprimento das promessas do Pai,apresenta a acção em favor dos pobres e dos sofredores como a grande prova do Seu ser de Messias: “Ide contar a João o que vedes e ouvis: os cegos vêem, os coxos andam, os leprosos são limpos, os surdos ouvem, os mortos ressuscitam e a Boa-Nova é anunciada aos pobres” (Mt 11, 4-5). Jesus mostra a natureza da salvação que vem anunciar e realizar: não se trata de uma mera doutrina, mas de gestos de compromisso efectivo para com quem se encontra em situação degradante. Consequentemente, quem também os não fizer não pode tomar parte no Reino de Deus. É o caso dos que vêem “um dos irmãos mais pequeninos” com fome, sede,peregrino, nu, doente, preso e não prestam assistência (cf Mt 25, 31-46). É que Deus «comove-se» com os pobres, os aflitos, os que choram, os que sofrem. A ponto de os declarar “bem-aventurados porque deles é o Reino dos Céus” (Mt 5, 3).
3. A Igreja primitiva compreendeu isto muito bem. Por isso, desde o princípio, dedicou-lhes muito do seu melhor. Recordemos apenas três dados: a instituição do diaconado para o serviço dos mais pobres dos pobres (cf Act 6, 1-6); a partilha de bens para que entre eles não houvesse necessitados (cf Act 4, 32-37) e a colecta ou peditório para os cristãos de Jerusalém, quando adveio a fome (2Cor 8,1-9,15). É que os crentes sabiam bem que ignorar os pobres seria fazer o mesmo que o rico avarento perante Lázaro (cf Lc 16, 19-31): porque infiel ao projecto de Deus para o mundo, o rico não poderia receber outra coisa que não fosse a exclusão do Seu Reino. Mas Lázaro –literalmente, “Deus ajuda”- pode ter a certeza de que mesmo que todos falhem, Deus está por perto como sua salvação.
4. Então, se a afirmação dos «direitos dos pobres» é central na revelação bíblica, os cristãos não podem deixar de reconhecer esses direitos como instância crítica para a sua fé e como uma obrigação urgente de actuação. O futuro novo, que só o Reino de Deus realizará em plenitude, reclama que esses direitos dos pobres sejam assumidos como prioridade. Ainda que isso suponha alguma redução dos nossosdireitos burgueses, já que não são da mesma ordem de urgência, por exemplo, o meu direito ao automóvel «topo de gama» ou o medicamento para a aterosclerose múltipla que o meu vizinho não pode comprar por insuficiência económica. Neste caso, por mais que isso me custe a entender, o meu vizinho tem «direito» a que eu lhe pague o medicamento. Mesmo que, por causa disso, eu não possa comprar o tal carro.
5. A «Semana da Caritas» pretende atingir estes objectivos. Em primeiro lugar, aspira a «espicaçar» as consciências, lembrar-nos que a caridade cristã é consequência inseparável da fé e formar para a partilha e para a solidariedade. Depois, e como resposta, procura que os cristãos vão mesmo «para o terreno», para as «periferias da existência», como diria o Papa Francisco, e realizem obras concretas, fruto de um amor generoso e gratuito, à imagem do de Deus. Para isso, precisa-se do contributo de todos, seja o económico, seja a actuação real. Até porque passa por aí a verdadeira condição cristã. Pensemos no que nos diz o Papa Francisco no fortíssimo nº 207 da sua ce-lebrada Exortação Apostólica “A alegria do Evangelho”: “Qualquer comunidade da Igreja, na medida em que pretender subsistir tranquila sem se ocupar criativamente nem cooperar de forma eficaz para que os pobres vivam com dignidade e haja a inclusão de todos, correrá o risco da sua dissolução, mesmo que fale de temas sociais ou critique os Governos. Facilmente acabará submersa pelo mundanismo espiritual, dissimulado em práticas religiosas, reuniões infecundas ou discursos vazios”.
6. Este ano, no Portugal da crise económica reflectida sobretudo nos mais vulneráveis, propõe-se uma «ocupação com os pobres» precisamente na dimensão mais básica de existência humana: no âmbito da alimentação. Sim, se ela faltar, falta tudo o mais. E falta, fundamentalmente, a dignidade humana. O que devia constituir uma enorme vergonha para este nosso mundo sofisticado e desenvolvido, com capacidade de produção de alimentos como nunca existiu, mas que faz do seu desperdício e destruição uma técnica para controlo dos preços. Mesmo que muitos padeçam e morram de fome. Vergonha! É esta a melhor expressão de um mundo «velho» assente nos pioresinstintos da avidez e da insolidariedade.
7. O cuidar do pobre, particularmente do esfomeado que não pode esperar, é um dos principais distintivos da actuação da Igreja e chave da vida cristã. Com frequência, está ligada aos seus melhores filhos, os santos, que se dedicaram a esta tarefa e criaram organizações para a desenvolver. Por isso, o cuidado dos pobres exprime-se na maior diversidade de carismas de que há memória. E mais: quase sempre antecipa e promove épocas de renascimento religioso, após algum «inverno da fé». Porque obrigam a Igreja a recentrar-se na sua verdade originária: “Cristo, sendo rico, fez-Se pobre para nos enriquecer com a Sua pobreza” (2 Cor 8, 9).A exemplo de Cristo, vamos, também nós, enriquecer os pobres com a nossa pobreza? Que ninguém falte à chamada.
D. Manuel Linda
Membro da Comissão Episcopal da Pastoral Social e Mobilidade Humana